G. K. Chesterton (1874 / + 1936)
Traduzido do inglês por Márcia Xavier de Brito
Algumas
das pessoas que mais falam sobre “mudança” e “progresso” são as pessoas que
menos podem imaginar, realmente, qualquer alteração nos testes e métodos de
vida existentes. Por exemplo, fazem do “ler e escrever” um teste para todas as
idades e civilizações. Ler e escrever são, em si mesmos, meros dotes, talentos
muito deleitáveis e excitantes, assim como tocar o bandolim ou dar laços.
Alguns dotes, geralmente, são moda, numa determinada época, e alguns noutra. Em
nossa civilização quase todos podem ler. Na civilização sarracena quase todos
podiam andar a cavalo. Mas as pessoas, persistentemente, aplicam os três Rs a
toda a História humana [Nota da Tradutora: A expressão “os três Rs” é utilizada
para descrever os fundamentos de um programa educacional de habilidades
escolares mínimas e significam: ler (reading), escrever (writing) e aritimética
(aritimetics), pois, em inglês, cada uma dessas palavras possui, no início, um
forte som do fonema R]. As pessoas dizem, numa espécie de vício revoltante:
“Sabias que na Idade Média não era possível encontrar um em dez cavalheiros que
pudesse assinar o nome?” Isso seria algo como se um cavalheiro da Idade Média
bradasse, horrorizado: “Sabias que no reino de Eduardo VII, não há um em dez
homens que saiba falcoaria?”.Ou, de forma mais específica, seria como se um
cavalheiro medieval ficasse desconcertado ao ver que o cavalheiro moderno não
pode descrever, em linguagem heráldica, seu brasão. O alfabeto é um conjunto de
símbolos arbitrários. As figuras da heráldica são um outro conjunto de símbolos
arbitrários. No século XIV, todos os cavalheiros o conheciam, no século XX,
todos os cavalheiros conhecem o alfabeto. O cavalheiro medieval era,
exatamente, tão ignorante por não saber que g-a-t-o querem dizer “gato”, assim
como o segundo tipo de cavalheiro não sabe que a cruz de Santo André é chamada
de sautor, ou que a sobreposição de “verts” em “gules” é má heráldica.Falamos,
com típica intolerância e mesquinhez, sobre “o” alfabeto, mas há, na verdade,
alguns alfabetos além do alfabeto de letras. O alfabeto de letras foi
insignificantemente utilizado na Idade Média, esses outros alfabetos,
atualmente, são pouquíssimos utilizados. Um determinado número de soldados
aprende a transmitir, entre si, um significado ao bandir, abruptamente,
pequenas bandeiras. Outros falam, de modo íntimo e loquaz, pelos reflexos do
sol no espelho. Esses alfabetos são habilidades, hoje, tão peculiares e
restritas quanto a escrita na Idade das Trevas. Eles podem se tornar um hábito
tão disseminado e universal quanto o hábito da escrita, hoje. Nalguma época
futura poderemos ver uma dama e um cavalheiro, cada um num lado da mesa,
conversando, animadamente, sacudindo bandeirolas. Poderemos ver distintas
senhoras nas janelas dos seus aposentos, com espelhos voltados para as ruas,
sacudindo-os, violentamente, para se comunicarem com as amigas a alguns
quilômetros. Isso será particularmente satisfatório, pois lhes dará um uso para
os espelhos, artigos que acreditam, no presente, ser completamente sem “raison
d’être”.Quão estranho não é tudo isso, posto que, muitas vezes, pensamos que a
educação tem relação com tais coisas como ler e escrever! Por que a verdadeira
educação consiste em não ter nenhuma relação com coisas como a escrita e a
leitura? Consiste, ao menos, em ser independente delas. A verdadeira educação
funda-se, exatamente, na realização da simplicidade permanente que perdura em
todas as civilizações, a vida que é mais do que carnal, o corpo que é mais do
que vestuário. O único objeto da educação é nos fazer ignorar os meros esquemas
da educação. Sem educação corremos no perigo, horrível e mortal, de levar a
sério as pessoas educadas. As últimas novidades da cultura, os últimos sofismas
do anarquismo irão nos entusiasmar, caso não sejamos educados: não saberemos
quão antigas são todas as novas ideias. Acreditaremos que a Ciência Cristã é
realmente todo o cristianismo e toda a ciência. Pensaremos que os matizes da
arte são, na verdade e somente, cores artísticas. Um homem não educado sempre
se importará muito com as complicações, com as novidades, as modas e o último
tipo. Será um dândi intelectual. Mas o problema da educação é nos mostrar todas
as variadas complicações, toda a desconcertante beleza do passado. A educação
nos ordena conhecê-las todas, algo que podemos fazer sem elas.
Outro
dia vi, no jornal, um espantoso exemplo de tudo o que dissemos. Parece que a
duquesa de Somerset esteve visitando algum internato onde eram ensinados, às
crianças, contos de fadas, e então, ao se dirigir ao corpo de tutores, noutro
local, disse que os contos de fadas estavam repletos de “bobagens”, e que seria
muito melhor ensinar as crianças a respeito de Júlio César (100-44 a.C.) “ou
outros grandes homens”. Aqui vemos a completa incapacidade de distinção entre o
normal e o eterno, o anormal ou acidental. Os conselhos tutelares são
acidentais e anormais; deverão ser consumidos pela ira de Deus. Internatos são
anormais, e espero ver, por fim, alguma forma de educação mais democrática e justa.
As “duquesas” são anormais; são um produto peculiar da combinação da velha
aristocracia com a nova mulher. Mas, os contos de fadas são tão normais quanto,
por exemplo, leite ou pão. As civilizações mudam, mas os contos de fadas nunca
mudam. Alguns detalhes podem nos parecer estranhos, mas seu espírito é o
espírito do “folk-lore”, numa tradução literal, a palavra alemã para senso
comum. A ficção e a fantasia modernas e todo o mundo selvagem em que habita a
duquesa de Somerset pode ser descrito por essa expressão. Sua filosofia
significa coisas comuns do modo como são vistas pelas pessoas comuns. O conto
de fadas é repleto de saúde mental. O conto de fadas pode ser mais sadio ao
falar sobre um dragão de sete cabeças do que a duquesa de Somerset poderá ser a
respeito de internatos.
Toda
a problemática dos contos de fadas é, simplesmente, o antigo e duradouro
sistema da educação humana. Um dragão de sete cabeças é, talvez, um monstro
muito terrível. Mas uma criança que nunca ouviu falar dele é um monstro muito
mais aterrorizante. O grifo mais maluco ou uma quimera não é uma suposição tão
absurda quanto uma escola sem contos de fadas. Pelo breve relato das opiniões
da duquesa de Somerset podemos ver, com facilidade, uma obscura e
extraordinária opinião, a opinião de que os contos de fadas são algo
fantástico, artificial, algo da mesma natureza de um gracejo, e, é claro, o
exato oposto é verdadeiro. Os contos de fadas são a mais antiga, séria e
universal forma de literatura. O internato é que é algo fantástico. O corpo de
tutores é que é algo artificial. A duquesa de Somerset é que é uma piada. Toda
a raça humana que vemos vagando em todos os lugares é uma raça mentalmente
alimentada pelos contos de fadas. Isso é tão certo quanto o fato de ser uma
raça fisicamente alimentada pelo leite. Caso os dragões de sete cabeças sejam
abolidos, simplesmente aboliremos os bebês. Alguns girinos cabeçudos, inumanos,
podem continuar vivendo, fazendo uma ridícula imitação da infância, mas,
provavelmente, morrerão jovens, especialmente se forem apresentados à vida de
Júlio César, caso tudo a esse respeito for contado, o que parece um tanto
inapropriado para a edificação infantil, principalmente suas primeiras
aventuras. Mas, se tudo a respeito de sua vida for dito, devemos nos consolar
com o fato de termos em mãos algo de sua vida, ou da vida de qualquer outro
homem, realmente importante. Se todos os acontecimentos de sua vida forem
contados, ela começaria pela vívida descrição de quanto ele adorava os contos
de fadas. Alguns desses contos de fadas foram apreciados até o fim da vida,
pois Júlio César era extremamente supersticioso, assim como todos os homens de
grande inteligência que não encontraram uma religião.
Aqui,
então, temos um curioso exemplo de uma pessoa equivocando-se um bocado a
respeito da atmosfera social para a sanidade eterna. Para começo de conversa,
mesmo com relação ao mero fato físico, os contos de fadas são um retrato muito
melhor da vida permanente de grande parte da humanidade do que a ficção mais
realista. A mais realista das ficções lida com cidades modernas — ou seja, com
um curto período de transição numa pequena esquina do menor dos quatro
continentes. Os contos de fadas lidam com a vida de campo, de cabanas e
palácios, daquelas simples relações com o gado e do tipo que, na verdade, são a
experiência de grande número de homens no maior número de séculos. O verdadeiro
fazendeiro, na maioria dos lugares, realmente não envia seus três filhos para
trazer-lhe fortuna. Ele sabe, muitíssimo bem, que eles não a trarão. O
verdadeiro rei da maioria das casas reais da Terra, realmente, não está pronto
a oferecer para algum destemido aventureiro a “metade de seu reino”. Seu reino
é tão extraordinariamente pequeno que, para começar, a divisão não parece
natural. Até mesmo nessas questões físicas, o conto de fadas parece incrível
porque estamos, de certo modo, numa posição excepcional. Caso nos pareça
incrível, isso é porque a grande civilização que construímos é uma coisa
especializada, singular e algo mórbida. Em suma, somente nos parece incrível porque
nós mesmos, muito em breve, seremos não-críveis.
No
mesmo jornal, ou noutro muito parecido, deparei-me com outro exemplo,
exatamente, da mesma falta de educação e de senso de proporção da História.
Outra distinta senhora de sociedade, de semelhante boa posição social, escreveu
para o “Daily Telegraph” sugerindo que as crianças dos internatos devessem ser
desestimuladas de se vestirem — ou melhor, que seus pais fossem desencorajados
de vestir-lhes — com ornamentos extravagantes e berloques, com rendas, veludos
ou laços de fita. Ela insistia que os meninos de Eton ou de Harrow vestiam-se
com sobriedade, em preto, branco e cinza. Um rapaz de Eton veste-se
discretamente não porque é viril, mas porque está na moda. Ela não parece estar
ciente de que, há pouco mais de um século, toda a aristocracia se vestia com
rendas e veludos e laços de fitas. Os pais das crianças pobres, novamente,
estão fazendo aquilo que é meramente normal a todo o ser humano. Estão vestindo
seus filhos como os cavalheiros de ontem se vestiam e poderão se vestir,
amanhã.
Este
ensaio não coligido foi publicado pela primeira vez na edição de 18 de novembro
de 1905 no “Illustrated London News”, após a publicação do livro “Hereges”.
Em língua portuguesa o artigo foi publicado originalmente no seguinte periódico: “The Chesterton Review (Edição Especial em Português)”, Volume I, Número 1, 2009: 11-14.
Fonte: https://www.sociedadechestertonbrasil.org/a-educacao-pelos-contos-de-fadas/
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